GORDURA PARA TODOS 
MARCELO COELHO
“Ser como você é”, nessa linguagem, equivale a ter um lugar definido no mercado consumidor
HÁ REVISTAS para tudo. Se você é criador de buldogues ou representante de vendas no setor de aparas de metal, certamente existe alguém pensando em publicar, todo mês, reportagens e artigos voltados para a sua área de interesse.
A imaginação “revisteira” nunca falha. Descobre-se uma celebridade que já teve um buldogue de estimação, ou cujo avô fez fortuna com resíduos de alumínio: já está pronta a entrevista da capa. Do cinema à gastronomia, existirá sempre uma coisa que se conecta com alguma outra e, quando menos se espera, o universo inteiro será revisto e interpretado do ângulo escolhido.
Nada mais parecido com uma galáxia do que uma extensão de lascas de níquel, nada que nos aproxime tanto do budismo quanto os hábitos de um buldogue; o candidato ecologista tem algo a dizer sobre a reciclagem do chumbo, e determinado técnico de futebol se inspira, quem sabe, na moral canina.
Já que tudo pode se transformar em “nicho de mercado”, é apenas uma questão de tempo para que tudo se transforme em revista.
Pensando assim, até que demorou muito para o surgimento de uma revista de moda voltada para mulheres acima do peso. Recebo o primeiro número de “Beleza em Curvas” (editora Digicamp).
Trata-se de uma “revista para quem ampliou o seu espaço para ser bonita”, diz a capa. E só num desbragado esforço de eufemismo estamos falando de “gordinhas”, de pessoas com “alguns quilinhos a mais”.
As fotos, as dicas de consumo e os discursos de autoestima se voltam para mulheres em estado de categórica obesidade. Existe “vida feliz acima do tamanho 46″, diz o editorial. “Viemos para dar espaço para todas as mulheres reais deste gigantesco, miscigenado e plural país”, continua o texto.
Gigantesco? Difícil saber se há controle consciente sobre os jogos de palavras que, naturalmente, ficam de tocaia quando se escreve sobre um tema tabu, como o da gordura feminina.
Domínio de texto, de qualquer modo, não é o forte dos redatores da revista. Cada página traz quantidades imoderadas de erros gramaticais, e o leitor deve estar preparado para encontrar frases como esta: “O amor é uma palavra antiga, mas um conceito pouquíssimo utilizado no geral”.
Ou ainda esta: “Numa antiguidade quase presente, a mulher era vista pelos maridos como reprodutora feminina”.
Mas vamos em frente. São tantas as páginas de mulheres realmente gordas, jovens, bem maquiadas e afirmativas, que o principal objetivo psicológico de “Beleza em Curvas” acaba por ser alcançado: naturaliza-se um pouco a obesidade e reforça-se a sensação de como também é estranho o padrão da anorexia.
Uma vez posta em funcionamento, a lógica “revisteira” já não consegue parar: tudo pode ser entendido da ótica obesa. De Rubens a Botero, a pintura dará assunto para muitas edições. De Preta Gil a Marilyn Monroe, sempre se pode destacar alguma celebridade menos obcecada com a balança.
Apesar disso, há limites para essa “ação afirmativa”, ou melhor, “autoafirmativa”. Um assunto não pode deixar de ser tabu nas páginas de “Beleza em Curvas”.
Trata-se da comida. A única reportagem sobre o tema insiste na importância da alimentação saudável: cenouras, tomates, grãos de soja. A mulher gorda e bem resolvida parece ter, aqui, a curiosa característica de não se interessar por chocolate ou marzipã.
É dinâmica, esportiva, sensual. Alimenta-se com moderação, veste-se bem, não tem complexos.
Ou seja, é uma mulher magra -só que com mais peso. A contradição vem à tona num só momento da revista: uma reportagem sobre cirurgias de redução do estômago. A afirmação da gordura convive com a sua negação.
O “padrão anoréxico” pode ser criticado. Mas há outra ditadura, na verdade, a ser combatida -e uma revista para gordas não difere de qualquer outra revista nesse aspecto. Trata-se da ideia de que, por uma espécie de auto-hipnose regada a muito consumo, você pode ser feliz sendo como é.
“Ser como você é”, nessa linguagem, equivale a ter um lugar definido no mercado consumidor. Sua identidade se afirma pelo que você consome – e assim se criam, em última análise, obesos de todos os tipos: os de comida e os de cosméticos, os de aparelhos eletrônicos e os de livros, os de buldogues e os de aparas de metal.
Folha de S, PauloIlustrada, quarta-feira, 4 de agosto de 2010, p. E14.

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